Augusto dos Anjos, pintura de Flávio Tavares.
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Cultura

110 anos do ‘Eu’, única obra de Augusto dos Anjos; entenda como poesia do paraibano se relaciona com a doutrina budista

Publicado em 30/06/2022 20h33

Como a obra de um poeta nascido num engenho do interior da Paraíba no fim do século XIX se relaciona com uma tradição religiosa oriental? É o que busca entender o estudo “O nirvana do Eu: os diálogos entre a poesia de Augusto dos Anjos e a doutrina budista”, dissertação do escritor paraibano Linaldo Guedes. “Eu”, única obra do escritor paraibano, está completando 110 anos em 2022.

De família católica fervorosa e em uma época em que a doutrina do budismo não havia ainda sido vastamente difundida em terras brasileiras, é possível que a influência “budista”, notadamente destacada em poemas como “Budismo Moderno” e “O meu Nirvana” tenha se dado a partir de uma das grandes referências do poeta, o filósofo alemão Schopenhauer.

Pode ser curioso que uma obra intitulada ‘Eu’ dialogue com uma filosofia oriental cujo norte é o “nós”. “Já se apontou com muita pertinência que o eu lírico de Augusto dos Anjos é na verdade um Nós. Em seu lamento ecoam o nosso desespero e a nossa perplexidade em face de uma época na qual a ciência põe em xeque as certezas religiosas e obriga o homem a erigir por conta própria uma nova grade de valores morais”, diz Chico Viana, escritor e professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

“A linha mestra do Budismo está presente em toda poesia de Augusto”, afirma Linaldo. “Você vai me perguntar o que tem a ver Augusto e o budismo. Tem muito! Tem alguns poemas dele com referências diretas ao budismo, como ‘Revelação’, ‘Meu Nirvana’ e ‘Budismo moderno’. Mas há mais que isso. Em diversos poemas do livro dele, há referências ao budismo e a termos correlatos, como samsara, cancros, entre outros”, diz Linaldo Guedes, especializado em ciências das religiões pela UFPB.

“Não busco provar que Augusto era budista, até porque ele era católico assumido. Mas mostrar que a filosofia budista do sofrimento está impregnada em sua poesia”.

Para o autor do estudo, o budismo prega que na vida “tudo é sofrimento” e, de certa forma, a poesia de Augusto dos Anjos também prega isso com seus versos mórbidos e pessimistas. “Um dos sinais que levaram o jovem Sidarta a mergulhar na meditação e no ascetismo foi a visão da decomposição do corpo humano após a morte. Isso está presente em vários poemas de Augusto dos Anjos”, explica o pesquisador, que também é poeta.

“Vejo também sinais de crença na reencarnação ou renascimento, como prega o budismo. Isso já está no primeiro verso de ‘Monólogo de uma sombra’, quando o poema diz: ‘Sou uma sombra, venho de outras eras…’ e no mesmo poema, mais adiante, ele fala do ‘samsara’, o nome do ciclo de renascimentos do budismo”, explica Linaldo.

“A filosofia da poesia augustiana é bem budista, no sentido de reconhecer a existência da morte e de que tudo acaba”.

“A maior parte da poesia de Augusto dos Anjos está impregnada da filosofia budista, de sofrimento, de dor, de compaixão, de busca do nirvana espiritual através da eliminação desse sofrimento”, diz o autor do estudo.

Por isso, Linaldo Guedes não está de acordo com aqueles que argumentam que a poética de Augusto dos Anjos promove o “ateísmo-científico-filosófico”. “Impossível isso! A poesia de Augusto é muito espiritualista. Há muitas referências, inclusive, nela, a dogmas cristãs. Como alguém ateu faria tal referência? Agora, claro, Augusto incorporou em sua poética as principais teses cientificistas que vingavam em sua época, além de usar muito da filosofia em sua forma de fazer poesia. Augusto podia até ser um cético em relação a muitas coisas, mas sua poesia não promove ateísmo, e sim uma reflexão sobre a ética humana”, diz Linaldo.

O autor explica que o budismo ensina, principalmente, a superação do sofrimento através de quatro pontos: sua natureza, sua origem, sua cessação e o caminho que conduz a essa cessação. “O caminho do Sidarta Gautama para a Iluminação passa pela superação do sofrimento, da dor que é comum a todos os mortais. Um caminho que tem quatro sinais, como a velhice, a doença, a morte e a decomposição do corpo”, escreve Linaldo.

Para Linaldo , a influência do budismo na poesia do autor paraibano não é algo secundário, mas algo que está no cerne da sua concepção de mundo. “Afinal, justamente esta perspectiva budista influenciou Augusto dos Anjos na construção de sua poética pautada pela questão do sofrimento como elemento filosófico fundante da existência humana. Também a doutrina budista reconhece da mesma forma a questão do sofrimento como elemento central no primeiro giro da roda do Dharma, onde também nos é apresentado o nobre caminho que permitiria ao praticante emancipar-se do ciclo de sofrimento inerente à própria existência”, diz em seu estudo.

Influência do filósofo Schopenhauer

Leitor ávido, Augusto dos Anjos admitiu em vida que era fortemente influenciado pela filosofia de Arthur Schopenhauer, especialmente no pessimismo de sua poesia. A hipótese de Linaldo Guedes é que a herança budista na poética de Augusto descende do escritor alemão. “Schopenhauer foi muito influenciado pelo budismo em sua principal obra – O Mundo como representação é verdade. Penso que a influência do budismo em Augusto veio de Schopenhauer”, diz o pesquisador.

Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX. Conhecido pela sua obra principal “O Mundo como Vontade e Representação”.

“No tempo em que Augusto escreveu os poemas do ‘Eu’, o budismo tinha chegado ao Brasil de forma muito tímida e com certeza não chegou a Augusto dos Anjos. Possivelmente, tomou conhecimento das principais doutrinas budistas a partir de Schopenhauer e isso pode ter motivado Augusto a pesquisar sobre a religião/filosofia oriental. Não há como provar como o budismo chegou a Augusto dos Anjos, mas a influência de Schopenhauer era admitida pelo próprio Augusto”, explica Linaldo Guedes.

Além disso, outro estudo de Sandra Erickson, citado por Linaldo Guedes, diz que a perspectiva budista da poética de Augusto dos Anjos não deve surpreender aos leitores, “principalmente pelo fato de o poeta paraibano ter sido leitor de Schopenhauer e Nietzsche, autores que beberam muito na fonte da filosofia oriental”. Para ela, a familiaridade de Augusto dos Anjos com o budismo é clara, a ponto de nosso poeta ter nos ensinado “a encarar Shiva, a Mãe Morte, como apenas um dos muitos processos naturais onde o verme é somente um operário da ruína”.

Poeta era católico

Apesar da influência da religião oriental em sua poesia, Linaldo reitera a relação de Augusto com o catolicismo. Segundo o pesquisador, Augusto dos Anjos era de família católica e cumpriu todos os rituais desta religião, inclusive solicitou a extrema-unção na hora da morte. “Sua poesia não se prende, no entanto, à louvação do catolicismo ou de outra religião específica. Mas pode ser encontrada forte influência da doutrina budista, na filosofia que reconhece que o ser humano está fadado à dor e ao sofrimento, por exemplo”, explica Linaldo.

A estadia de Augusto dos Anjos em Recife, quando fazia o curso de Direito, alterou em muita coisa a sua formação religiosa, diz Linaldo. “A Faculdade de Direito do Recife era um foco de rebeldia, de descrença e combate ao catolicismo. Augusto era discípulo de Haeckel e de outros filósofos materialistas, mas, de certa forma, sua poesia tem muitos questionamentos espirituais”, diz um trecho do estudo.

“O poeta divagava pelo monismo, pelo evolucionismo, pelo transformismo, pelo politeísmo, mas também, acrescentamos, pelo budismo, hinduísmo e pelo catolicismo. Não era agnóstico porque até o fim da vida se manteve fiel à tradição católica”, diz o autor.

110 anos do ‘Eu’

Livro ‘Eu’ de Augusto dos Anjos, completa 110 anos em 2022. — Foto: João Alfredo/ g1 Paraíba

Neste mês de junho, a obra “Eu” de Augusto dos Anjos completa 110 anos da primeira publicação. O escritor paraibano Chico Viana explica que, em carta à irmã Iaiá, datada de 23 de junho, Augusto escreveu: “Enviei-lhe há alguns dias um exemplar do ‘Eu’, livro de versos que acabo de publicar nesta Capital”. Por essa referência não parece haver dúvida de que o livro foi lançado em junho, embora não haja certeza quanto ao dia.

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no dia 20 de abril de 1884, no Engenho Pau D ́Arco, hoje município de Sapé, Paraíba. Em 1912, lançou seu único livro de poemas , “Eu”, acrescido de outras Poesias na segunda edição. Em vida, Augusto passou por dificuldades financeiras após a decadência da família e, como professor, teve que sair da Paraíba para tentar uma vida mais digna para sua família no Rio de Janeiro e depois em Leopoldina, Minas Gerais, onde veio a falecer em 1914, vítima de pneumonia.