foto--- Acervo de família e CPT Nordest
Acervo de família e CPT Nordest

Brasil

Brasil reconhece violação de direitos humanos no caso do homicídio de membro do MST e pede desculpas oficialmente na Corte Interamericana

Publicado em 09/02/2024 13h41

O Brasil reconhece que violou direitos humanos na condução do processo referente ao homicídio do trabalhador rural e membro do Movimento dos Sem Terra (MST), Manoel Luiz da Silva. O Estado pediu desculpas oficialmente durante uma audiência que julga o caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), nesta quinta-feira (8), na Costa Rica.

As alegações finais da Corte e uma sentença definitiva devem ser publicadas em cerca de 30 dias, conforme informações do advogado e assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em João Pessoa, Noaldo Meireles.

Além de familiares de Manoel Luiz, a coordenadora do CPT em João Pessoa, Tânia Maria de Souza, também participou da sessão. Já a delegação brasileira incluiu representantes da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

O caso foi peticionado pela ONG Justiça Global, pela Comissão Pastoral da Terra da Paraíba (CPT-PB), pela Dignitatis e pela Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Almir Muniz.

“Que esse julgamento venha fazer Justiça porque o Estado não tomar providência incentiva cada vez mais os grandes proprietários a cometer delitos com crueldade. Se não tem o Estado pra intervir e cessar essas desavenças, os fazendeiros vão continuar com o massacre. A esperança é que esse julgamento possa trazer a diferença”, disse o filho de Manoel Luiz, Manoel Adelino.

O Brasil realizou o reconhecimento oficial da violação dos artigos 5, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conforme solicitado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Porém, não reconheceu a violação do direito à verdade e sua relação com a violência aos trabalhadores e trabalhadoras rurais.

A Advocacia-Geral da União (AGU) lamentou a morte de Manoel, reconhecendo a urgência da democratização da terra e o desrespeito à integridade física, psicológica e moral dos familiares, devido à demora no progresso do processo judicial, que resultou em um sofrimento significativo ao longo dos 16 anos de tramitação do caso — considerando que o julgamento dos dois acusados pelo assassinato, ocorrido em 1997, só foi concluído em novembro de 2013.

Já a defesa da vítima aponta que se o Estado admite violação dos artigos 5, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não parece razoável deixar de acolher a violação do direito à verdade e apresentar na audiência uma peritagem que defende que a investigação e o processo se deram de maneira adequada.

Ainda durante a sessão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reiterou a importância de medidas de compensação e assistência inclusive médica aos familiares, e medidas de não repetição, como realizar um diagnóstico da violência no campo do país como consequência de conflitos pela terra e a criação de um banco de dados com esses casos como forma de monitoramento.

A comissão também considera importante que se adote protocolos de investigação de mortes violentas contra trabalhadores rurais de acordo com os padrões interamericanos.

O reconhecimento da falha do Estado não contemplou quais dessas medidas serão implementadas.

Uma vida de ausências

Impactada pela tragédia, a família de Manoel Luiz enfrentou uma situação dramática nos anos seguintes. Seu filho narra uma vida de ausências, tendo que negligenciar os estudos na infância para começar a trabalhar aos 9 anos.

Ele relata ter visto sua mãe cair na depressão e no alcoolismo após a morte do marido, perdendo também o filho caçula em 2005, quando tinha apenas nove meses. O maior desafio foi seguir em frente. Sua família deixou o assentamento onde morava por segurança e nunca voltou devido ao trauma.

“O impacto na família foi grande, principalmente pra mim como filho e pra minha mãe. Ele era o chefe da família, a estrutura física da família. Nesses tempo pra cá, minha mãe foi adoecendo e se entregando ao vício e foi perdendo a vida aos pouco até chegar o momento de falecer. Depois do ocorrido, ela não conseguiu permanecer em frente, firme e forte. Eu cheguei até mesmo a pedir comida pelas rua com fome tinha muitas vezes. As condições financeiras ficaram bem baixas”, conta Manoel Adelino.

Manoel Adelino afirma se sentir prejudicado até hoje pela falta de oportunidades e infortúnios provenientes da morte do pai.

“Ter a Comissão Pastoral da Terra e vários outros órgão de direitos humano batalhando e seguindo em frente para nós familiares é gratificante. Desde o ocorrido não tem sido fácil, a gente nunca esquece e minha família sempre espera por Justiça”, pontua.

As Ligas Camponesas lutavam por direito à terra e por uma vida digna. — Foto: Arquivo/Memorial das Ligas Camponesas

Hoje o assentamento onde Manoel Luiz residia leva seu nome e até abril de 2022 abrigava 700 pessoas. Entretanto, muitos dos acampados que chegaram com ele ao local partiram logo após o crime, com medo de retaliações. Os assentados enfrentam desafios significativos, como a falta de acesso à água para a agricultura, estradas precárias e dificuldade de participação em programas de agricultura familiar.

O caso Manoel

O crime aconteceu em 1997 em São Miguel de Taipu, Paraíba, quando o trabalhador foi baleado. A investigação aponta que os autores foram os seguranças particulares do proprietário da Fazenda Engenho Itaipu.

Na ocasião, a fazenda estava em processo de expropriação para a reforma agrária. Manoel Luiz e outros três trabalhadores sem-terra foram confrontados por seguranças enquanto atravessavam a propriedade. Os seguranças os advertiram para não entrar na área, informando que tinham ordens do proprietário para matar qualquer sem-terra encontrado ali. Após uma discussão, um dos seguranças atirou em Manoel, resultando em sua morte no local.

O processo penal foi marcado por falhas como a demora para a realização da perícia, falta da busca pela arma do crime e a desconsideração do contexto de violência contra os trabalhadores rurais na região, violando direitos fundamentais dos familiares e das garantias judiciais, conforme informações da Justiça Global.

Caso Almir Muniz

Já o caso Almir Muniz também será julgado pela Corte IDH, nesta sexta-feira (9). O crime aconteceu em 2002, quando ele desapareceu em Itabaiana, no Agreste paraibano, e as investigações foram arquivadas sete anos depois, apesar de indícios de seu assassinato ter sido cometido pelo policial civil Sergio de Souza Azevedo.

Ameaças contra sua integridade, apesar de constantes, chegaram a ser registradas na delegacia de Itabaiana, perpassando o âmbito municipal da comarca quando o próprio agricultor fez denúncias na Sessão Especial sobre a Violência no Campo na Assembleia Legislativa da Paraíba, em dezembro de 2001.

Em 2002, os familiares de Almir denunciaram seu desaparecimento à delegacia de Itabaiana, onde o policial Souza Azevedo estava lotado. No entanto, a denúncia não foi registrada e nenhuma ação imediata foi tomada para localizar a vítima ou investigar os acontecimentos. Há relatos que indicam a hostilidade do policial em relação aos trabalhadores rurais, especialmente Almir.